Do fundo de Minas Gerais, Triângulo Mineiro, é kinem uma assombração que paira nas ruas. A Kali foi acolhida pelo graffiti e pela Rua e é nela que ela gosta de estar. Seja na tinta, no papel e cola, adesivo, intervenções, rolês, ela vem terrorizando os muros limpos já fazem uns 8 anos, oficialmente.
Depois de fazer muitos amigos ao redor do mundo resolveu juntar todos eles no Festival de Colantes, uma grande celebração da arte de rua. Planeja a dominação mundial em breve e é expert em planos mirabolantes.
Primeiro de tudo, se apresenta pra quem não te conhece. Quem é Kali, de onde ela vem e o que a motiva?
Sou a Kali, me inspiro na deusa matadora de demônios. Sempre fui uma criança esquisita e artista. Poder viver, fortalecer e performar minha arte é um privilégio que agradeço todos os dias. Sempre fui chamada de Do Contra e diferente, e hoje vejo que isso na verdade é uma grande qualidade. Queria que o mundo fosse justo, pra que nós meros seres humanos pudéssemos desfrutar de verdade desse Planeta lindo que ganhamos de presente. Faço minha arte pra isso. Para que minha breve existência como um primata símio e limitado faça alguma diferença, ainda que pequena. Eu amo viver aqui, apesar de tudo, acho que uma vida não é o suficiente pra tudo que eu queria ver e viver. A Rua é minha segunda casa, minha segunda mãe, e meus amigos são minha família. Esse corre é muita loucura, e o bagulho é loko, mas é gostoso…
Como e quando você teve o seu primeiro contato com a arte de rua? E quais foram suas primeiras referências?
Quando eu era criança na minha quebrada em Uberlândia eu sempre notava a mesma
assinatura nas paredes: um nome de facção e um moleque de boné com um cigarrin na
boca. Eu me perguntava quem era e porque assinavam em todas as paredes, e achava
muito legal, mas sempre foi meio inatingível pra mim, minha mãe não me deixava muito
sozinha na rua por causa das tretas que rolavam na área na época. Eu lembro que fazia
umas assinaturas de corretivo na escola e em volta da minha casa que era onde eu
brincava. Fazia também adesivos de caneta bic nas etiquetas que pegava escondido da
casa do meu pai.
Escrevia Michael Jackson em todas e colava em vários lugares, e ainda tenho uns exemplares dessa época colados aqui em casa. Nessa mesma época eu também colecionava adesivos de feira, juntava toda e qualquer moedinha e toda quinta ia na feira com a minha mãe e comprava uma cartela grande e uma pequena. Fazia points de troca com minhas amigas, brigava por adesivos. Ainda tenho o álbum, e é meu maior tesouro.
Em uma certa época me mudei para Belo Horizonte. Eu colava nos rolês de Hip Hop e via
os pixadores, mas não tinha coragem de chegar perto porque eram todos homens, eu
achava que eu jamais poderia fazer aquilo, que não era pra mim.
Apesar de ter nascido artista, venho de família pobre que valoriza muito o trabalho formal, braçal. Artista nunca foi uma atribuição e muito menos uma profissão. Tudo mudou uma vez quando estava em Uberlândia de férias e vi duas minas pixando e tinha pixo delas na cidade inteira (salve Iraquianas). A partir daí nunca mais parei. Já fazem 8 anos.
Você tem uma presença muito forte do azul e de objetos que você cola nos trabalhos como brilhos e pedras. É uma estética e universo particular, mas que transborda para alguns personagens e trabalhos que divulga. Pode contar um pouco sobre esse universo, escolha de cores e elementos nas obras?
A minha trajetória na arte começou comigo fazendo coisas que eu gostaria de ver. Nunca
estudei arte na teoria, então tudo desde a escolha de cores, referências anatômicas,
composição vêm de um lugar muito íntimo e pessoal. O meu azul na verdade é um turquesa (mistura de azul com verde) e ela é a cor oficial da pele dos meus personagens. Eu sou uma mulher racializada mas que não se encaixa em nenhum lado exatamente. Muito branca pros pretos, muito preta pros brancos. Eu não falo muito sobre isso mas sempre foi uma questão pra mim desde pequena. Eu sempre desenhei personagens com muita personalidade e sempre coloquei cores não-humanas na pele deles. Uma grande referência pra mim é o filme “Interstella 5555“ da dupla Daft Punk, em que membros de uma banda de outro planeta são sequestrados por um terráqueo ganancioso e são maquiados como humanos para trabalharem à força pra ele. No planeta deles todo mundo tem a pele azul igual, mas quando são transformados em humanos um deles é amarelo e o outro negro.
Esse filme é o meu favorito e tem a minha música nele: “Voyager“. Isso tudo inspira muito a minha arte pois de fato sou viajante interestelar que está meio perdida aqui nesse planeta. Os brilhos que eu colo são a expressão de quem eu sou. Eu sou brilhosa, adoro glitter, já fiz drag queen, uso muitos acessórios, estou sempre com um tanto de coisa pendurada, e minha arte não é diferente.
Como você definiria a cena de Uberlândia? Geograficamente está muito mais
próximo da capital de Goiás do que a capital de Minas Gerais. Você percebe
influência de ambos estados por estar nessa relação mais de fronteira?
A cena artística de Uberlândia é uma terra muito fértil administrada por um fazendeiro ruim.Aqui é ninho de talentos, tem muita gente muito talentosa e criativa. A fronteira com Goiás e interior de São Paulo moldaram diretamente a população uberlandense, que em sua maioria nunca foi em Belo Horizonte e não têm a mínima noção do que rola por lá.
É difícil o rolê cultural em geral, e, principalmente no graffiti têm de ser iniciativa própria. Eu comecei com a produção cultural por falta de um rolê bom e que deixasse a gente à
vontade. Aqui a grande massa curte sertanejo e rolê universitário, mas o underground
segue vivo e florescendo. A gente nunca para, e quem não tá vendo Uberlândia precisa
começar a ver urgente, estamos chegando e com o pé na porta!
Kali e Michael Jackson. Tem obra dedicada no spray, tem sticker... já teve
lambe também? Para além de fã, qual é a tua relação com esse artista-entidade?
O Michael é uma presença tão antiga na minha vida que eu sinto como se eu conhecesse
ele desde sempre e vice-versa. Ele me acompanha em todos os momentos, tristes e felizes
e realmente me dá a sensação de estar chegando em casa. Seus clipes pra mim são
lugares de conforto que eu sempre retorno pra me aconchegar ou pra comemorar. O seu
trabalho como artista e como humano me inspiram tanto que eu não consigo nem descrever e muito menos consigo responder a essa pergunta sem chorar (estou escrevendo e chorando enquanto escuto Baby Be Mine). Sou fã desde muito pequena e para além do entretenimento eu aprendi muito com ele sobre Ser Humano, sobre empatia, sobre justiça, luta social. O Michael é um homem preto que veio da pobreza e transformou o planeta como um todo e no auge do seu sucesso, na contramão da maioria dos grandes artistas, falou cada vez mais sobre desigualdade social, racismo, violência policial, consciência de classe e outras questões que levariam qualquer outra pessoa de volta à obscuridade. As artes que faço em homenagem a ele não são nem 1% da gratidão e amor que eu sinto e uma parcela ainda menor do carinho que ele merecia e não teve. Ele me inspira a sempre fazer o meu melhor e nunca me contentar, sempre buscar jeitos e abordagens novas, sem medo das críticas e com muito peito pra errar e aprender. Eu espero viver mais muitos anos ainda pra fazer mais muitas artes que relembram quem foi e ainda é o maior de todos, em todos os aspectos.
Tem um livro do Luiz Navarro intitulado "Pele de Propaganda" que narra um pouco de um recorte da cena de BH entre 2000 e 2010. Parte das produções mineiras que ele apresentou no estudo ironizava e/ou questionava alguns tabus sobre corpo, gênero e sexualidade, seja por meio de personagens infantis ressignificados ou frases de efeito. Fazendo um paralelo pra 2024, muito da tua produção tem a presença do corpo enquanto parte da obra, seja nos lambes e stickers, ou no próprio ato de pintar, que junto à moda se tornam uma performance. Pode contar um pouco mais pra gente sobre como você pensa isso tudo socialmente e na sua produção?
Eu penso na minha arte como uma performance completa. A Kali é o meu vulgo e também
meu alter ego. A minha obra começa no momento que eu chego para fazê-la, e eu também
sou parte dela. As minhas roupas, os meus acessórios, as minhas cores, a minha postura,
tudo isso faz parte da minha performance. Existir é uma performance.
Nada jamais me impedirá de servir looks na padaria numa quarta-feira de manhã.
Andy Warhol falava muito sobre isso, e sua personalidade e imagem são tão conhecidas como suas obras de arte. Eu sou uma mulher artista e gosto muito de tocar na ferida.
O graffiti, por exemplo, é um meio extremamente machista e eu sempre recebo críticas por vestir minhas roupas de garota e fazer vídeos pintando, falam que eu quero chamar atenção e usar meu corpo para vender minha imagem. Mal sabem eles que na verdade eu faço graffiti tanto quanto eles enquanto visto minha minissaia e tamanquinho de oncinha. E nada pode mudar isso, por mais que queiram. Eu habito esse corpo e farei dele meu instrumento para fazer arte. Eu não tenho vergonha de ser quem eu sou, não tenho vergonha de ser mulher.
Para além do seu trabalho artístico, existe também um trabalho de fomento e produção com o Festival de Colantes. Como nasceu a ideia, quem participa e o que vai rolar esse ano?
O Festival de Colantes nasceu numa aula de Cálculo que eu deveria estar prestando
atenção. Eu já trocava adesivos via carta com pessoas do mundo inteiro, e fui acumulando
infinitos adesivos e coleções. Viajava para ir em eventos de adesivos, fiz vários amigos
nesse meio e queria poder juntar todos eles. E não só isso, queria trazer todos para a minha cidade, meio esquecida no interior de Minas, mas com muito potencial. Queria expor minhas coleções e compartilhar todo esse universo que existia no meu ateliê, nos Correios e nas placas de rua que nem todo mundo presta atenção. Bolei planos mirabolantes, contei com a ajuda e apoio de amigos incríveis nessa caminhada (salve JJ, Tigu, Vhll, Lacar, Nauzea, Cecato e toda minha equipe fiel) e a primeira edição foi mágica, todos se juntaram em êxtase e foi uma festa incrível. O segundo ano também foi incrível e já dava pra notar o crescimento do Festival, com gente de vários estados presentes. Estamos no terceiro ano, e agora com apoio de incentivo municipal vamos fazer mais uma vez as ruas de Uberlândia pegar fogo. Realizei um sonho antigo de reunir a cena de adesivos num álbum de figurinhas. Não posso dar muitos spoilers, mas vai ter muitos artistas da pesada, um monte de coisa rolando ao mesmo tempo, muitos adesivos, muita gente bonita e legal. Eu não passei em Cálculo na época mas esse movimento faz tudo valer a pena. Vai ser uma grande festa, estão todes convidades!
Quais são teus principais desejos tanto no plano pessoal quanto no profissional?
Eu só quero poder fazer arte o resto da vida. Considero um grande privilégio poder fazer
arte e movimentar a cena que pertenço. Quero sempre trazer ideias novas, ajudar e inspirar pessoas. Chegar a lugares que hoje ainda me parecem impossíveis e até inimagináveis. Acessar todo tipo de ruas, de lugares, de pessoas e vivências. Viajar o mundo fazendo arte, e trazer de volta muito conhecimento e recursos pra minha quebrada, fazer daqui uma referência artística. Dar muito orgulho pra minha veia e ser sempre fiel ao que ela me ensinou: tratar as pessoas bem, ter respeito ao trilhar meus caminhos e nunca esquecer de onde eu vim.
Pra gente fechar, conta aí uma coisa que a rua te ensinou, um rolé inesquecível que tu deu e um rolé que você ainda não fez, mas tem muita vontade.
A Rua me ensinou que a gente não precisa de muito pra ser feliz. Às vezes tudo o que a gente precisa é de um rolê num lugar que vai te deixar com suspeita de leptospirose. Ou de dormir numa casa redonda sem portas nem janelas que vai te ensinar mais coisas em dois dias do que quatro anos na faculdade. Ou de dividir um chevette de madrugada com uma pessoa em situação de rua sentada na calçada tranquilamente numa das regiões mais perigosas da cidade. É a magia da rua que não se compra e não se estuda em pdf.
Eu ainda quero expor fora do Brasil, tacar o terror em terras distantes e aterrorizar os
gringos >:).
Por último, fica a vontade pra falar sobre algo que não foi abordado aqui, mas que você gostaria muito de deixar registrado.
Queria mandar um salve pra todas as minas que fazem arte na rua, habitam as ruas. Se isso fizer mesmo sentido pra você, não desista. São muitos desafios e deselegâncias, mas a nossa presença é fundamental pro futuro. Nós podemos ser referências pras meninas que estão nos vendo, assim como nós tivemos as nossas inspirações. É fundamental a presença dos nossos corpos, das nossas lutas. É essencial que nos vejam de verdade,
queiram eles ou não. Tamo juntas!
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