Paula Mello (37) é artista visual, filósofa, fotógrafa e idealizadora do ColaAqui! StickHere!, iniciativa que desde 2010, ou melhor, nos últimos15 anos (já podemos falar 15, né?) promove a linguagem dos colantes, e consequentemente, oxigena a cena, movimenta a cultura visual da cidade atingindo novas gerações de fazedores. É um prazer pra nós trazer a Paula aqui pro nosso cantinho virtual, ler sobre sua trajetória, reflexões, pesquisas, referências, angústias, desejos e, acima de tudo, recebê-la como merece: artista e maestra, dessas que compõe não só os próprios caminhos, mas que pavimentou/pavimenta estradas pra caminhadas e caminhantes múltiplos.
Conta pra gente: como, quando e onde foi o seu primeiro contato com lambes e stickers? Quem foram tuas referências nesse processo?
Nasci e cresci no interior de São Paulo - sou de Lins e aos 17 mudei para Marília, onde fiquei até os 35 anos (hoje estou com 37). Na minha adolescência vinha muito para São Paulo e foi aqui que tive os primeiros contatos com lambes e stickers, me lembro bem das placas da rua Augusta todas cheias de colantes. Eu ficava encantada, tipo criança mesmo - até porque desde criança adoro adesivos, quando eu tinha uns 5, 6 anos e morava em Lins, meu pai vinha a trabalho pra São Paulo e sempre me levava esses adesivos que vendiam em bancas de jornal.
Só observando as ruas eu levei um tempo pra entender o que era essa cena, quem eram os artistas e como funcionava. Eu não entendia como podia ter tanto da mesma arte espalhada por aí. O primeiro contato, de encantamento, foi assim, no começo dos anos 2000. Aí em 2006, já morando em Marília, comecei a estudar fotografia e me encontrei nessa linguagem. As viagens para São Paulo passaram a ser acompanhadas de câmera e retomei o contato com lambes e stickers fotografando eles, buscando padrões / coincidências de referências. Nessa época o Flickr, rede social de fotografia, fazia bastante sucesso e comecei a publicar minhas fotos por lá com tags de arte de rua. Em 2007 fiz uma oficina de stencil com um amigo, Thiago Costa Guedes - artista incrível - e ele me deu várias ideias para fazer stencils a partir das minhas fotos e usá-los para fazer lambes e stickers, mais discretos de se fazer nas ruas de uma cidade pequena e conservadora. E foi aí, em 2007, que comecei a criar meus primeiros stencils, lambes e stickers usando fotos minhas e também algumas fotografias antigas de domínio público. Fotografava os lambes e stickers colados e postava no Flickr e fui fazendo conexões com artistas colantes de vários lugares do mundo. Lembro bastante do Punk Robot de SP- e da emoção te trocar um pack com ele - e também do Stellenconfuse da Itália.
Nessa mistura de vivências analógicas e partilhas digitais fui me aprofundando nas linguagens colantes, tanto em pesquisas para descobrir sua(s) histórias(s), quanto conhecendo artistas, eventos, fazendo trocas e vendo minhas artes coladas em lugares que eu nunca fui, mas me colaram.
O que é e de onde partiu a ideia para o ColaAqui?
A ColaAqui! é uma expo-intervenção interativa de artes colantes - bom, na verdade ela surgiu com essa proposta e daí foi expandindo. A ideia surgiu em 2010, quando eu estava super empolgada com as trocas e cultura colaborativa das artes colantes, produzindo stickers e lambes e enviando pra eventos, trocando packs com artistas e nisso descobri os eventos de artes colantes. Lembro de ver a divulgação da ExpoStickers de São Paulo, em 2009, e ficar doida pra colar, mas a distância das cidades não permitiu. Ficou aí a primeira vontade. Depois, o grande impulso de fazer algo assim foi a Stick On Haring!, expo de stickers organizada na Itálita pelo Stellenconfuse que montava esculturas a partir de desenhos do artista Keith Haring que eram adesivadas e espalhadas pelas ruas. Foi o estalo de "eu preciso fazer algo assim".
Em 2010 eu dava aulas de fotografia em uma escola de artes em Marília e estava participando da organização de um sarau com atrações de várias linguagens e aproveitei para realizar aquela vontade: fotografei uma caixa de energia com stickers colados, fiz um cartaz super simples e abri a primeira chamada para artes da ColaAqui! StickHere!, já pensando no alcance internacional dos envios. E aí já surgiu o conceito / proposta que até hoje guia a ColaAqui!: todas as ações são um convite, são abertas, coletivas e colaborativas. Faço a chamada para envio, recebo os packs, organizo os espaços que irão receber a expo - muitas vezes através de parcerias de artistas e eventos colantes também - e aí a abertura da exposição é sempre uma colagem coletiva com quem estiver presente, usando as artes recebidas na chamada e quem estiver na hora é que ajuda a colar e decidir o que fica onde.
Eu sempre pensei que a ColaAqui! é coletiva em muitos aspectos e minha ideia era "colar artes de todo mundo no mundo todo" - sem pretensão, mas como um sonho quase inocente mesmo. Quatorze anos depois, o sonho continua sendo vivido e compartilhado e a ColaAqui! StickHere! já realizou 06 encontros de stickers na capital paulista, 22 exposições interativas em 10 cidades do Estado de São Paulo - Marília, Bauru, São Paulo, Diadema, Santo André, Mauá, São José do Rio Preto, Araraquara, Assis e Lins e também em Florianópolis/SC; 04 ações colantes em Nova Delhi, na Índia, além de diversas oficinas e mesas de troca de stickers. A ColaAqui! StickHere! também já fez parte do cenário do Programa Manos e Minas, a partir de convite da TV Cultura. Por meio de chamada aberta para artistas participantes, o projeto recebeu artes de mais de 250 artistas de 29 países com uma proposta sempre interativa, colaborativa, coletiva, ao vivo e itinerante e hoje é a exposição de artes colantes na ativa há mais tempo no Brasil.
Em sua opinião quais são as principais diferenças na participação ativa de mulheres na cena de rua pensando nas diferenciações entre graffiti, lambe e sticker?
De cara eu penso nas violências às quais mulheres estão mais suscetíveis a sofrer. É sempre uma preocupação sair de casa, para qualquer coisa, em qualquer lugar, estou (estamos) acostumada(s) a andar de um jeito, evitar trajetos, ter gestos de proteção e etc. Isso, somado à exposição de se estar intervindo no espaço público, tolhe um tanto a liberdade. Pra colar sticker eu saio sozinha sem problemas, mas lambe prefiro estar acompanhada e minhas amigas do graffiti relatam que preferem estar acompanhadas também.
Conheço e vejo muitas mulheres à frente de eventos, ações e intervenções nas ruas, porém com um destaque muito menor do que os homens. Somos minoria mesmo quando não somos. Nesses meus quase 20 anos de trajetória de artes colantes, a maioria dos eventos de lambe e sticker no Brasil que conheci eram/são organizados por mulheres, mas até hoje eu recebo mensagens no perfil da ColaAqui! no masculino, como se o interlocutor do lado daqui só pudesse ser um homem. A questão é estrutural: a valoração do trabalho de uma mulher está sempre sujeita a mais elementos do que acontece com os homens, em todas as áreas de trabalho. Então quando vêem um trabalho massa de arte de rua, muitas pessoas não associam isso às mulheres. Esse foi um dos motivos d'eu começar a aparecer nas redes sociais da ColaAqui!, por exemplo, pela importância política de mostrar quem está por trás da cena.
As mulheres são muito ativas nas linguagens da arte de rua, mas seus trabalhos são menos reconhecidos e valorizados (tanto em projeção quanto financeiramente), em muitos casos deixam de frequentar certos espaços e eventos por vivências ruins. Encontrei e encontro muitas minas incríveis e nos juntamos para sair colando e essa união é muito massa, esse instinto de sobrevivência que carregamos sempre alerta também gera essa construção de comunidade. Mas que cansa ter que driblar violências cotidianas, falta de retorno e reconhecimento, isso cansa - e muito!
Você tem algumas séries de fotografia. Conheci o seu trabalho através da série "PASSAGES". Pode falar um pouco sobre ela? Você tem alguma série de fotos em pesquisa atualmente? Como você pensa essa relação da fotografia e o lambe?
Fotografia é minha linguagem "inicial", digamos assim. Meu trabalho artístico se formou e intensificou através da fotografia e até hoje é o que mais produzo - inclusive a maior parte dos meus lambes parte de fotos minhas.
"Passages" ou "Passagens" é uma série de autorretratos em baixa velocidade diurna, que realizei em 2015 na Fundação Sanskriti Kendra, em Delhi, quando fui artista residente lá. Era minha primeira vez na Índia, em uma imersão numa cultura muito diferente da nossa - mas com inúmeros pontos em comum e isso me deixou bem mexida. Na dia do meu vôo para lá ganhei da minha melhor amiga o livro "Poemas escritos na Índia" de Cecília Meireles - poesia é uma paixão que compartilhamos. Até então eu nem sabia que Cecília tinha ido pra lá. O livro me acompanhou ao longo da viagem toda e cada poema foi tocando em um momento, em um lugar. Entre eles, "Multidão" é o que mais ecoou e ecoa na lembrança e é ele que inspirou a série, em especial essa passagem:
"Aonde vão esses passos pressurosos, Bhai? A que encontro? a que chamado? em que lugar? por que motivo?"
A ideia de uma passagem: aérea, de texto, de tempo, de corpo, de lugar… De passos. Daí os auto retratos foram feitos em sequência, em vários lugares da fundação de arte que contém obras, ateliês, jardins e linguagens. E nas linguagens diferentes passei, onde tantas e tantos também já passaram e passarão.
No momento estou aprofundando pesquisas de referências - estéticas e teóricas - e revisitando meu portfólio para entender como quero prosseguir com alguns temas. Tenho vislumbrado possibilidades criativas através de outras práticas, mas ainda estruturando internamente como realizar isso. O tempo exterior andou demandando um ritmo e estilo de produção que não tem feito mais sentido pra mim, então tentando desacelerar e ver o que e como vou querer daqui pra frente.
Nossa, e a relação entre fotografia e lambe é uma pauta antiga já nas minhas pesquisas e reflexões! Vejo inúmeras conexões, que vão da semelhança técnica da reprodutibilidade - ambos são linguagens que tem uma relação de quantidade multiplicada; as possibilidades de metalinguagem entre ambos; a noção de registro e efemeridade, que compõe a fotografia em si e também faz isso com o lambe, uma intervenção efêmera que existe no pós através da imagem.
Em 2022 produzi uma vídeoaula intitulada "Fotografia: Metalinguagens e Arte de Rua" via edital PROAC, onde conto um pouco da minha trajetória na fotografia, no lambe e no sticker, e também apresento alguns conceitos e reflexões teóricas sobre a intersecção dessas linguagens que tanto amo. Pra quem quiser conferir, está disponível no YouTube:
Conta um pouco da residência e vivência artística na Índia? O que você fez por lá? Onde mais a arte já te levou?
Desafio aceito: tentar resumir o que foi tanta coisa! Fui para Índia 3 vezes, em 2015, 2016 e 2017, o que foi ótimo pra me afinizar mais com a cultura local, conhecer mais lugares, dar continuidade a trabalhos e desenvolver bastante coisa. A residência artística foi a primeira experiência, a primeira ida pro oriente, a convite da artista Regina Carmona em contato direto com a Fundação Sanskriti Kendra, em Delhi. O espaço recebia (algumas coisas mudaram pós pandemia) artistas de todo mundo em um lugar mágico, construído de acordo com os costumes e tradições indianas. Toda alimentação era focada nos pratos típicos, as construções onde ficávamos eram construídas em adobe, três museus fazem parte do complexo da fundação… Foi uma imersão indiana com o privilégio de estar muito bem amparada.
Ao aceitar o convite no final de 2014, planejei muita coisa que mudou quando cheguei por lá. Mas, a ColaAqui! foi um desses planos que deu muito certo. Entrei em contato com artistas de lá via internet, fiz uma chamada especial para a tour do outro lado do mundo, e fui de mala, cuia, lambes e stickers. Realizei intervenções da ColaAqui! através de instalações e colagens em vasos de cerâmica espalhados pela Fundação Sanskriti Kendra, exposição interativa ao vivo na Lalith Gallery, além de colagens pelas ruas - incluindo rickshaws, placas, pedras na beira do rio Ganges. Também conheci o Yogesh Saini, fundador do Delhi Street Art, coletivo de artistas de rua que fazem intervenções por toda Índia. Yogesh se tornou um grande amigo e parceiro das atividades colantes por lá e uma das maiores tristezas que tive esse ano foi receber a notícia de seu falecimento repentino.
Desenvolvi a série fotográfica Passagens, iniciei a pesquisa da série "young americans", onde retrato os olhares dos homens olhando diretamente para mim, num misto e desejo e estranhamento. Esse trabalho foi e é um divisor de águas no meu processo criativo. Trabalhei nele durante todas as viagens, em 3 anos, e ele se desdobrou em uma pesquisa extensa sobre pautas de violência contra a mulher. Nas primeiras tentativas de expor essas fotos, seja de forma física ou online, a reação das pessoas sempre ia para um lado de exotismo cultural, o que me incomodou muito. Os comentários continham afirmações cheias de certeza de que "lá é muito machista né?", e sim, lá é, aqui é, o mundo é. Então comecei a mudar a abordagem e a usar esse material fotográfico para puxar a discussão - em exposições e rodas de conversa - sobre as práticas machistas que compõem o nosso cotidiano, usando as fotos como um ponto de partida de reconhecimento de algo incômodo, em seguida acompanhado dos dados sobre índices de violência na Índia e no Brasil - e sim, os números são bem maiores no Brasil, mesmo tendo 1 bilhão de habitantes a menos.
Aqui sei que já saí um pouco da Índia no assunto geral, mas uma das coisas que fiz por lá que me impactou profundamente foi repensar toda minha construção enquanto pessoa. Um pouco clichê né? Fui aberta ao novo e diferente, me surpreendi com muita coisa igual e parecida, experimentei muitos temperos e situações que nunca imaginei - incluindo sobreviver ao insuportável calor de 53 graus.
A arte já me levou para outros lugares dentro e fora do Brasil. Minha primeira exposição individual internacional foi em Beja, Portugal, no ano de 2014, de uma série fotográfica chamada "Do tempo vivido em silêncio". Desta viagem surgiu a série "in ter mi tên cia s", que me levou pra Uberlândia e Ribeirão Preto para exposições nos SESCs. Em formato de lambe e sticker já fui até pro Japão. Posso dizer que nisso tudo, entre trajetos e trajetórias, as compartilhadas foram as coisas que mais me marcaram. É uma experiência indizível poder trocar tanta vida.
Colar é uma função extremamente física e desgastante, e tópico de pouca ou quase nenhuma reflexão entre artistas. Quando o assunto é corpo, o mais provável a ser pensado está mais ligado a gênero e a relação infeliz entre segurança, integridade física e cidade, por conta da cultura violenta e patriarcal da qual estamos inseridos, mas nunca em relação às condições físicas, do tempo, das horas de atividade, materiais que auxiliam ou atrapalham, obstáculos e impedimentos da rua. Como você reflete todas estas questões na sua prática? É algo que você já pensou em trazer enquanto discussão em trabalhos e eventos do qual integra?
Nossa, demorei tempo demais pra pensar sobre isso! Acredito que nessas camadas de violência relacionadas ao corpo, por ser uma mulher gorda, sinto mais pressão ainda de performar bem.Gosto de atividades físicas e não sou sedentária, só que a minha imagem carrega pré julgamentos externos na nossa sociedade preconceituosa.
Então me peguei várias vezes questionando minha capacidade física ao sair em um rolê pra colar nas ruas, por exemplo, em grupo… Ficava preocupada se tivesse fome e quisesse parar pra comer, se eu iria "cansar antes" das outras pessoas e o que iriam pensar.
O que fui vivenciando e aprendendo na prática é que o cansaço é o mesmo pra todes, a gente anda pra caramba, se expõe, carrega materiais pesados, ergue extensores metros de altura pra colar onde não conseguem arrancar e isso desgasta mesmo, é um trabalho de corpo.
Já errei muito em calcular o tempo que levaria pra fazer uma ação colante, seja individual ou da ColaAqui!, e me sobrecarreguei e a equipe que estava ajudando. Cada vez mais penso em exercitar e fortalecer meu corpo pra dar conta desse tranco (sem pretensão de emagrecer, frisando pra evitar uma possível leitura gordofóbica dessa frase) e também planejar com mais tempo e cuidado algumas coisas. Ano passado fiz uma parede de 25m de lambe em um único dia. Estava com equipe de apoio de mais 3 pessoas e foi um absurdo. Lição aprendida.
O tema corpo & corporalidades, principalmente as dissidentes, tem feito cada vez mais parte do meu repertório de pesquisa e criações. Tenho uma produção robusta quanto a corpo gordo em lambe e sticker e pretendo aprofundar algumas discussões em trabalhos futuros também.
Você tem uma caminhada voltada para a educação, além da arte e da produção de eventos. Algum desses caminhos te faz pulsar mais?
Caramba, é meio que tudo junto sabe? Comecei a dar aulas de fotografia há 15 anos e logo depois vieram as oficinas de arte de rua. Continuo atuando nessa frente até hoje, com cursos e oficinas de artes visuais, na pegada de "conhecimento é pra fora e não pra dentro". Trocar e compartilhar sobre arte me movimenta internamente, enquanto artista. Isso vale pros eventos também, sempre relacionados com arte.
Com o tempo fui ampliando as linguagens com que trabalho, e fui partilhando isso. Aprendo muito nas trocas, em aulas, organizando encontros, produzindo eventos. De todos os lados. Gosto de ser público, adoro ser aluna também. Cresço enquanto artista, enquanto curadora. Não consigo separar essas práticas enquanto realização pessoal e profissional. Mesmo vivendo uma diferença muito grande financeiramente entre essas atuações profissionais, todas me realizam e ajudam nas minhas reflexões e práticas artísticas.
Sabemos que viver do trabalho artístico e, sobretudo, de arte pública é um desafio. Na maioria dos casos não é a atividade principal da pessoa artista. Você se enquadra em qual desses cenários? De que formas você busca rendimentos que envolvem seu trabalho artístico?
Estou há 17 anos tentando que a arte seja minha atividade principal - o que acontece por breves períodos espaçados ao longo dos anos. É algo que desanima bastante pois não basta ser artista, é preciso ser sua produtora, gestora, publicitária, social midia, curadora, etc. Um dos caminhos que encontrei é justamente a atuação na educação, ministrando cursos e oficinas. Tenho uma caminhada longa e bonita com isso. Também fiz uma pós-graduação em Gestão Cultural para ter mais conhecimento ao trabalhar com captação de recursos e projetos culturais.
Já o trabalho enquanto artista visual é sempre um corre, na maioria das vezes auto-financiado. Além de muito tempo de escrita e tentativas em editais de fomento, chamadas de apoio para ações artísticas e afins. São políticas super necessárias, mas não suprem as necessidades para que seja o cotidiano.
Minha produção é variada, mas costumo trabalhar com temas desconfortáveis para muita gente - entre eles luta anti homofobia e anti gordofobia, direitos das mulheres, identidades e existências dissidentes. Então já ouvi que meu trabalho não é "vendável", o que questiono sim, mas enfrento muitas barreiras nisso.
Depois da pandemia, com tudo que vivemos e eu também na esfera mais pessoal, sinto que estou um pouco mais retraída em certas tentativas, ao mesmo tempo que nunca me inscrevi em tantas chamadas e editais. E sigo atuando enquanto gestora de projetos, arte-educadora, fotógrafa, videomaker, artista de rua…
Há um tempo venho sentindo uma sobrecarga nesse sentido, compartilhada por outres amigues artistas, e também um desânimo / desestímulo muito grande, pois cada vez menos o tempo da criação e fruição existe e tô buscando possibilidades diferentes, pra reencontrar os caminhos que façam sentido - e isso tem um impacto imenso tanto na produção, quanto na minha relação comigo mesma.
O que você tem escutado, assistido e lido e que de certa forma influencia nas tuas produções ou vem como novas referências?
Das leituras, acabei de ler (finalmente) o "Garotas Mortas" da Selva Almada, escritora argentina que me transporta para ambientes e sensações de uma maneira absurda. Tenho ganas de conseguir causar sensações parecidas com meus trabalhos. Esse livro, uma mistura de reportagem jornalística com narrativa literária, em especial, toca na questão de violência contra mulher, assunto que permeia minha produção há uns anos e quero aprofundar leituras e criações.
Nessa mesma reflexão, estou lendo "Teoria King Kong" da Virginie Despentes e tem me ajudado a embasar alguns desconfortos e entender problemáticas relacionadas a esses corpos e o que as sociedades julgam que podem submtê-los.
No âmbito mais teórico, "A arte queer do fracasso" de Jack Halberstam me traz conforto na dissidência, um encontro comigo mesma enquanto outsider / errante, fora da norma.
Música é uma coisa que me acompanha desde sempre - fui uma criança de walkman e até hoje vivo com fone de ouvido por aí, inclusive a série de fotos "young americans" foi nomeada em função da música do David Bowie. Atualmente não tenho ouvido nada muito diferente do que já ouvia, estou sentindo falta de praticar, quero arrumar meu violão e fazer aulas de canto. Sem pretensão mesmo, acho que aqui bem no sentido de colocar meu corpo pra jogo no sentido amplo. Não era muito de ouvir podcasts, mas sou fã declarada da Déia Freitas e o Não Inviabilize faz parte dos meus dias. Além da postura da Déia e como ela conduz as narrativas, o fato de serem histórias do cotidiano me prende demais, acho que cotidiano é o “assunto” que mais fotografo e me encanta.
Cinema foi minha rotina semanal por anos, principalmente na adolescência. Assisto mais ou menos coisas dependendo da fase, e agora ainda mais com tanta opção de séries e afins. O que tenho buscado são referências diferentes do que cresci ouvindo que eram "os filmes de verdade", que hoje enxergo bem mais o recorte de criação branco-europeu-masculino. Então buscando referências de outras regiões do mundo, produções com equipes compostas por mulheres e pessoas trans e não-bináries. Dos assistido do mês que mais gostei posso citar: "A Piscina de Estímulos" do Reino Unido dirigido pelo The Neurocultures Collective na perspectiva de pessoas que vivem dentro do TEA ; "Fiscal da Felicidade" do Butão que fala sobre essa profissão no país e como é medido o índice de felicidade de seus habitantes e "Um Dia Antes de Todos os Outros" nacional com direção de Valentina Homem e Fernanda Bond, com equipe e elenco majoritariamente femininos.
Para além da profissão, enquanto Paula Mello, qual o seu maior sonho?
Bem utópico mesmo? Poder ser exatamente quem eu sou sem ter medo. Viver em uma sociedade onde as dissidências não sejam um não-lugar, mas que tenham suas existências validadas e respeitadas. É sonho né?
Deixa aqui algo que não foi perguntado e que gostaria de trazer.
A importância de estar alinhade com o que acredita, não deixar sua inteireza por motivo ou situação. Se moldar para caber nos lugares - do cotidiano à prática artística - é uma imposição perversa e não perder a integridade do que se é, é o que nos deixa em pé e fortalecides pra seguir em frente. Não estou dizendo pra ser irredutível e se tornar uma pessoa que se impõe a qualquer custo, sob o risco de oprimir outras diferenças e diversidades, mas sobre não ceder por formatações alheias. Se vender vai muito além de assinar um papel. É tipo aquela música dos Mutantes, "só não vá se perder por aí…"
Paula Mello .
outubro 2024. www.paulasmmello.com
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